Wednesday, September 27, 2006

Requiem pela casa de Garrett *

In memoriam de Cristina Futscher Pereira,
no primeiro aniversário da sua morte

Na crónica deste ano de 2006 ficará registado um acontecimento que, sem a repercussão de outros de maior imediatismo e preponderância na vida nacional, é deveras emblemático do nosso já antigo desleixo cívico e cultural, se não for mesmo sintoma de doença mais grave. Falo da demolição da casa em que morreu o poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, e figura preponderante da vida portuguesa da primeira metade do século XIX, Almeida Garrett.
Nascido no Porto, Garrett veio para Lisboa com dez anos de idade, iniciando assim um itinerário de certo nomadismo, que passa pelos Açores, pelos exílios, pelas funções desempenhadas no exterior, mas também pela inconstância da residência. Não diz ele nas Viagens na Minha Terra «De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo num lugar, e não posso sair dele sem pena?» Esta mesma frase usou Henrique de Campos Ferreira Lima, estudioso que devotou muito do seu esforço à investigação da biografia garrettiana, num artigo da revisa Olisipo (Outubro de 1939) dedicado precisamente ao levantamento das casas onde o poeta residiu, por períodos de duração variável, em Lisboa. E foram muitas.
Apesar disso, aquela última casa da antiga Rua de Santa Isabel, actual Rua Saraiva de Carvalho, adquiriu uma importância particular. «Foi com esta casa, supondo que, talvez, seria aquela onde, por mais tempo, se fixaria até à sua última morada, que o poeta teve maiores preocupações», afirma Ferreira Lima no artigo já citado. Garrett escolheu-a, mandou arranjá-la, cuidou de a mobilar e decorar com extremos cuidados antes de ir habitá-la com sua filha. Gomes de Amorim descreve minuciosamente a casa pronta nas suas Memórias Biographicas de Garrett, que constituem a principal fonte de informação de Ferreira Lima, mas também de José Osório de Oliveira em O Romance de Garrett e de todos quantos se têm interessado pela biografia do poeta: a entrada, o jardim, no andar nobre a saleta, a livraria com as quatro estantes, a cadeira abacial, o quarto de paredes forradas de papel verde e festões de rosas. Esta era a casa ansiada, na qual Garrett entrou a 30 de Outubro de 1854 e onde, pouco mais de um mês depois, morrerá às 6 horas e 25 minutos do dia 9 de Dezembro.
O fiel Gomes de Amorim, que acompanhou a agonia do escritor, conta com repulsa e patético desgosto o abandono a que alguns dos seus próximos o votaram: «Eram outras, inteiramente outras as circunstâncias; porém não faltava muito para que a morte de Garrett fosse igual à de Camões. Graças a Deus, que tal não sucedeu. Semelhante opróbrio basta que se veja uma vez em mil anos, para deixar uma eterna mancha na face da nação que o consentiu».
Quando desapareceu, aos 55 anos, Garrett não era propriamente um desconhecido. Estivera presente nos momentos cruciais da vida política do seu tempo e nem a sua acção nem a sua figura tinham passado despercebidas. Culturalmente, deixou marcas indeléveis. Literariamente, nenhuma figura relevante posterior pôs em causa a sua importância ou rejeitou a sua herança. O Frei Luís de Sousa, as Folhas Caídas e As Viagens na Minha Terra ocupam um lugar inamovível na história do nosso teatro, da nossa poesia, da nossa narrativa, e são consistentes com o resto da sua obra, incluindo a recolha pioneira que o Romanceiro constitui.
Em todos os momentos da história do último século houve quem reivindicasse filiações garrettianas. Uns saudaram o nacionalista, outros celebraram o liberal, uns sublinharam mais o seu apego aos valores da pátria e o amor das raízes, outros o seu apego aos valores do povo e aos ideais democráticos, uns reviram-se mais no dandy, outros no político, mas a admiração literária foi sempre comum. E as suas circunstâncias humanas sempre foram comummente respeitadas.
A preservação da casa onde o escritor viveu os últimos dias da sua vida tinha o mais alto interesse simbólico, por representar o gesto intencional de vincular a sua figura ao lugar e à cidade, tornando mais palpável uma geografia pessoal capaz de nos restituir a sua presença.
O edifício apresentava um valor arquitectónico e histórico intrínseco, mas o facto de Garrett ali ter vivido dava-lhe uma particular representatividade, o facto de ali ter morrido envolvia-o numa aura. A gravura reproduzida nestas páginas**, publicada no Archivo Pittoresco, que iniciou a sua publicação em 1857, e a conhecida aguarela de Ribeiro Cristino quase constituem uma tradição iconográfica que, somada às tentativas que desde 1874 se fizeram para que o edifício fosse classificado, sublinham o facto de a casa imprimir carácter àquele lugar.
A casa de Garrett poderia ter sido um pretexto. Não para o reduzir a um «equipamento» alimentado à custa de mundos e fundos, mas um pretexto para recentrar a memória colectiva, como que a recordar que o mundo não começou ontem. Um pretexto ainda para fazer descobrir ou redescobrir a sua obra, não apenas o seu nome ou o prestígio de monumento que automaticamente se lhe associa, e de nela rastrear a dimensão humana do seu Autor. A reconstituição minuciosa dos interiores poderia ter sido um momento de grande criatividade e cooperação interdisciplinar. Mas enfim, nada se criou, tudo se perdeu: nada ficou que pudesse ser transformado.
As cidades renovam-se, transformam-se, acumulando no seu seio várias idades, sobrepondo referências urbanas, para o bem e para o mal. Mas a história urbana não se revela apenas nas casas, ruas e praças, mas também na gente que as habitou e percorreu, e nelas fez história.
Não existe entre nós, talvez, suficientemente enraizado, o instinto de preservar, nem o gosto de dar a ver o passado de um modo simultaneamente imobilizado e vivo, numa sequência de aprendizagem, abrindo caminhos a novas peregrinações, fixando na cidade novos pontos de referência que dêem mais espessura à sua história íntima. Ou talvez falte sobretudo amor à cultura, por não termos colectivamente interiorizado que ela é tudo o que somos, e nela se reflecte tudo o que não somos. Ou, então, teremos de acreditar que as palavras de Garrett continuam a fazer sentido, mais de século e meio depois: «Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...»
Jorge Colaço
*Artigo publicado no volume colectivo Annualia 2006-2007, Editorial Verbo, Lx., 2006, nas livrarias a partir da próxima semana.
** Ver gravura neste post de Março.

Tuesday, September 19, 2006

Casas onde, em Lisboa... (16)

Nesta casa foi colocada, em 1865, uma lápide de mármore branco, guarnecida de cortinas, em que se lê a seguinte inscrição, que tem por cima uma pequena lira:
No dia 9 de Dezembro de 1854
falleceu n'esta casa
o poeta portuguez
Visconde de Almeida Garrett
Foi esta lapide feita nas officinas de
Sergio Augusto de Barros
e assente na dita casa
no dia 25 de Junho de 1865 -- ao meio dia.
Por várias vezes foi apresentada sugestão para esta casa ser considerada monumento nacional, como consta das seguintes publicações:
Boletim Architectonico e de Arqueologia, 3.ª vol. 1874, 2.ª série, pág. 138; Relatorio e mappas acerca dos edifícios que devem ser classificados monumentos nacionais apresentados ao governo pela Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes em conformidade com a portaria do Ministerio das Obras Publicas de 24 de Outubro de 1880, Lisboa, 1881 (entre os Logares memoraveis menciona a casa do Visconde d'Almeida Garrett, na rua de Santa Isabel); Monumentos nacionaes, por Gabriel Pereira, Lisboa, 1900 (entre as Casas memoráveis aponta a de Garrett, em Lisboa) e Subsídios para a classificação dos monumentos nacionais, Lisboa, 1904 (entre os Logares memoraveis, de Lisboa, indica a Casa do Visconde de Almeida Garrett, na rua de Santa Isabel, informando: «é a casa em que residiu nos seus ultimos tempos, e onde morreu o illustre poeta».)
Apesar destas sugestões não foi considerada monumento nacional, por isso não vem incluida no folheto Monumentos nacionais -- Legislação e classificação, Lisboa, 1923.
Actualmente é proprietária da casa onde faleceu Garrett, a sr.ª D. Maria Pinto Soares e Silva, avó do sr. Augusto Pinto Soares e Silva, casado com a sr.ª D. Maria Clotilde Torres Pinto Soares e Silva.
Visitaram esta casa, muito recentemente, os distintos jornalistas srs. Artur Portela e Couto Rodrigues, que, respectivamente, deixaram as suas impressões no Diário de Lisboa, e no Fradique, de 10 de Maio de 1934, neste em artigo intitulado: Na casa em que morrera Almeida Garrett.
A casa onde morreu o grande poeta Almeida Garrett é indicada aos visitantes de Lisboa na Guia do forasteiro nas festas antonianas, Lisboa, 1895, e no Roteiro das ruas de Lisboa, de Sebastião Pacheco.
(fim da reprodução do texto sobre as casas que Garrett habitou em Lisboa, publicado por Ferreira Lima no Boletim dos Grupo «Amigos de Lisboa», em 1939)

Casas onde, em Lisboa... (15)

Gomes de Amorim, em largas páginas das Memorias de Garrett, descreve, pormenorizadamente, esta última residência de Garrett.
Apenas resumiremos um pouco o que lá vem.
No rés-do-chão ficava a porta principal, que dava para um pequeno vestíbulo, tendo de cada lado uma janela de grades e um portão. O portão da esquerda era o da cavalariça e o da direita correspondia a uma rampa que levava aos pátios, jardim e quintal.
O andar nobre tinha cinco janelas de frente: duas da biblioteca, duas da sala e uma da saleta.
Nesse mesmo andar ficavam o quarto de cama, com a respectiva retrete; o quarto destinado à filha; a casa de jantar, com a sua copa e a cozinha. Nas águas-furtadas havia ainda dois quartos, um, provisoriamente reservado para sua filha e outro para a criada.
As diferentes divisões estavam guarnecidas por móveis artísticos e de bom gosto.
Assim, na biblioteca patenteavam-se as duas magníficas estantes de pau santo e jacarandá, que lhe haviam sido oferecidas pelo Duque de Palmela; outras duas estantes, mais modestas, que estão na Biblioteca Pública de Angra; um bufete, presente do ministro do Brasil, em Lisboa, Vasconcelos Drummond e a célebre cadeira abacial, que fôra de seu tio D. Fr. Alexandre da Sagrada Família, que, presentemente, pertence ao Museu do Conservatório Nacional de Música.
No quarto de cama havia, entre outros móveis, uma magnífica cama de pau santo, em estilo sebastianista; na sala viam-se mesas de embutidos, bufetes, banquinhas, cadeiras, colunas torneadas, etc., e na casa do jantar estava colocada uma mesa elástica de um só pé, dois móveis hamburgueses e doze cadeiras cobertas de marroquim.
«Como casa particular, foi a sua apesar de pequena, escreve Gomes de Amorim, a primeira que em Lisboa se conheceu ornada quase toda de móveis antigos restaurados. Havia-as muito mais ricas, de pessoas opulentas; nenhuma de mais harmonia no conjunto artístico».
Foi nesta casa que, pelas seis horas e vinte e cinco minutos da tarde de sábado, nove de Dezembro de mil oitocentos e cinquenta e quatro, se finou o Divino, como a Almeida Garrett chamavam, em Coimbra, os seus condiscípulos.
Gomes de Amorim aventou a ideia de se conservar, intacta, esta casa, constituindo-se, assim, um Museu Garrett.
Na revista Atlântida, de 1916, referiu-se, também, o ilustre escritor João Grave à sua adaptação a museu. (continua)

Friday, September 01, 2006

Casas onde, em Lisboa (14)

No ano de 1854, para ficar mais próximo da sua filha, que, então, era educanda do Convento das Salésias, foi morar para a rua da Junqueira, n.os 1 a 7, numa casa, construída no antigo Forte da Estrela, de que era proprietário o Marquês de Angeja.
Escreve o seu biógrafo: «Num domingo do mês de Junho de 1854, tendo já alugado os baixos da casa do Marquês de Angeja, para ir passar ao pé da filha o resto do verão…»
E, mais adiante, dá informações mais minuciosas acerca desta residência: «Seguindo a estrela do seu último rumo, e no intuito de ficar mais perto da filha, tomou o rés-do-chão da casa do marquês de Angeja, no princípio da rua Direita da Junqueira, à esquerda, indo para Belém. É a que tem na parede o letreiro da citada rua e à esquerda uma peça de artilharia de ferro, cravada no chão com a culatra voltada para cima. A porta de entrada, para um pequeno largo ou recanto, mostra o n.º 1».
Nesta casa o visitavam, amiúde, Gomes de Amorim, os seus vizinhos Pintos, a família de D. Pedro Moscoso, que morava no primeiro andar, e certas senhoras suas vizinhas, influentes na escolha daquele sítio, segundo as informações do seu minucioso biógrafo.
Ali compôs a comédia intitulada O Conde Novion, a pedido deste, para acompanhar a representação do seu drama Ódio de raça.
«Ali se instalou em Junho, cedendo dois ou três quartos, à entrada, a uns parentes do visconde da Luz, casados de pouco tempo. Lembro-me que o marido tinha o apelido de Pinto; era militar e de muito agradável trato Os aposentos de Garrett continuavam para o lado da Junqueira. Eu tinha ali um quarto, com janela sobre o páteo arborizado, que deita para a travessa».
Foi ainda no princípio deste ano, em 5 de Janeiro, que alugou a casa da rua de Santa Isabel, n.º 56, que depois mudou para o n.º 78, em que foi o primeiro inquilino. Era seu proprietário Francisco José de Araújo Barros.
Em Fevereiro, como informa Gomes de Amorim, já lá andava o armador Gaspar, e antes do fim de Junho, para ela se fez a mudança dos móveis da casa da rua do Salitre, a que assistiu o poeta.
Arrumada a livraria, houve ali um almoço de inauguração a que assistiram, além de Gomes de Amorim, os escritores Mendes Leal, Rebelo da Silva e Felner.
Foi com esta casa, supondo que, talvez, seria aquela onde, por mais tempo, se fixaria até à sua última morada, que o poeta teve maiores preocupações.
Sucedem-se as cartas, com minuciosas instruções, para o dedicado Manuel José Gonçalves, escrivão do Depósito Público, acerca da reparação dos móveis, da sua arrumação; colocação de cortinas, de passadeiras, de papéis, de candeeiros; pinturas diversas, etc.
Ele e Gomes de Amorim, com a colaboração de Militão José Ferreira, armador que veio substituir o negligente Gaspar, arrumaram a casa e os móveis; arranjaram o jardim, onde foram plantadas várias espécies botânicas; fizeram acender os fogões para que as tintas secassem; contrataram criados; mandaram polir as carruagens, etc. Em suma, empregaram a sua actividade a fim de que o poeta viesse tomar posse da casa, com tudo disposto nos seus lugares.
Este, tendo adoecido na Junqueira, foi, assim mal disposto e achacado que, em 30 de Outubro de 1854, entrou na sua nova casa, onde exalaria o seu último alento. (continua)

Casas onde, em Lisboa (13)

No ano de 1851 foi o nosso poeta veranear... para Belém.
«No 1.º andar da casa n.º 16, em Belém, na correnteza de casas que vai do largo ou praça de D. Fernando para a actual ponte dos vapores, ao pé dos arcos, que olham para o rio, passou o poeta o fim do verão e parte do outono de 1851», informa o seu biógrafo.
No ano seguinte igualmente escolheu Garrett o sítio de Belém para o seu veraneio...
Lê-se nas Memórias, de Gomes de Amorim: «O poeta passou o resto desse verão e o começo do outono na casa do arco da passagem para a torre (de Belém), a qual tem hoje o n.º 40, na porta do meio, à direita, indo do Bom Sucesso».
De 22 de Setembro datou, de Pedrouços, uma carta dirigida a Gomes de Amorim.
Este informa sobre o assunto: «Garrett fôra passar esse verão e parte do outono em uma casa do largo do páteo das Vacas. É uma das que têm hoje o n.º 36 ou o n.º 40, subindo, à direita. Afirmo ser uma dessas, mas, apesar de lá ter ido estes ano (1882) verificar, não ouso dizer em qual das duas foi, receoso de que a memória me engane». (continua)

Friday, July 28, 2006

Casas onde, em Lisboa (12)

Na primavera do ano de 1849 foi Garrett residir, algum tempo, com Alexandre Herculano, no eremitério da Ajuda.
A propósito disse Bulhão Pato [nas Memórias]: «A serenidade luminosa daquela casa convinha ao estado de espírito do poeta em tal momento. Não podia escolher melhor retiro».
Este agudo estado de espírito do poeta era originado na sua arrebatadora paixão por um Ignoto Deo [a Viscondessa da Luz, D. Rosa Montufar Barreiros], que, então, o avassalava e que deu origem às Folhas caídas, que veio concluir junto de Herculano, conforme escreveu aquele.
Com ele e outros companheiros fazia excursões pelo vale das Romeiras, Carnaxide, Linda-a-Pastora.
Por ali se conservou o poeta até à aproximação do inverno.
O falecido poeta José Ramos Coelho, que foi amigo de Garrett, nas suas Obras poéticas, Lisboa 1910, a pág. 770, alude a esta casa, que, então, tinha apenas um andar. (1)
Ali o procurou em 1852 a fim de ouvir o juízo do mestre sobre o seu primeiro livro de versos e solicitar-lhe um prefácio.
Também Matos Sequeira se refere a esta casa, a respeito da qual consultou o rol dos confessados da freguesia de São Mamede.
Segundo este documento moravam lá: João Baptista de Almeida Garrett; Adelaide de Almeida Garrett, sua filha; José António de Carvalho, criado; Emília Rita, criada; Manuel Alves Torres, criado. Aquele ilustre arqueólogo não conseguiu identificá-la e justifica esta dificuldade: «É de supor que o prédio fosse restaurado ou aumentado, porque não houve meio de encontrar em toda a rua edificação que correspondesse às precisas indicações de Gomes de Amorim. Mais uma desvantagem, a acrescentar às muitas, que trouxe a alteração dos números de polícia».
Antes de Garrett vir para aqui morar «o Salitre era um bairro extremamente solitário», no dizer de Júlio César Machado no seu livro Apontamentos de um folhetinista.
Como refere o mesmo espirituoso folhetinista, este sítio, naquela época, era considerado como perigoso e, apesar de serem baratas as rendas das casas, estas estavam quase sempre com escritos.
Garrett porém, segundo o mesmo autor, escolheu-o, antes de lá residir, com mais permanência, exactamente por ser um sítio isolado, para espairecer….
Aqui transcrevemos as palavras do malogrado escritor, que ali próximo residiu: «Um homem de excepção, que percebia tudo, o grande Garrett, não lhe escapou a vantagem que este sítio oferecia com o seu retiro e o seu isolamento, e saltitou por ali uns poucos de anos, antes mesmo de lá morar, o que só teve lugar no último tempo a sua vida e quando já começava o Salitre a não ser o ponto deserto da cidade. O amável maganão do ilustre poeta – têm estragado por aí tanto os qualificativos, que quando a gente fala do Garrett e lhe chama ilustre, quase que tem escrúpulo de não achar termo mais digno! – tinha sempre por ali alugada ora uma casa, ora outra, como casa de campo, e ia espairecer ali, como em França os senhores do tempo elegante da regência também usavam, em proporções talvez menos campestres e menos pitorescas…»

(1) Ultimamente, segundo escreve o mesmo Ramos Coelho, fôra substituído por um prédio de três andares e passara a ter o n.º 334.

Wednesday, July 26, 2006

Casas onde, em Lisboa... (11)

No verão de 1848 esteve Garrett, no Dafundo, em casa da família Palha (palácio que parece ter pertencido ao diplomata Marco António de Azevedo Coutinho e onde habitou Beckford), onde compôs a comédia O noivado no Dafundo ou cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso, que ali foi representada por amadores.
No começo do ano de 1849 mudou-se da casa da rua do Alecrim para a rua do Salitre, n.º 180, de que era senhorio Francisco Carlos Botelho Moniz.
O seu biógrafo assim a descreve:
«Era prédio pequeno, independente, que ainda conserva a mesma fisionomia, com as suas três janelas de frente no primeiro andar, grades de ferro nas duas do rés-do-chão e o velho portão ao centro».
E continua:
«A casa agradara por ter quintal. O poeta amava as flores, quase tanto como as mulheres; e gostava que estas dessem voto acerca da escolha e disposição daquelas. Com a sua habilidade, não era difícil consegui-lo. O quintal da rua do Salitre fôra ajardinado com gosto, porque o tinha, e muito, a pessoa que me disseram ter sido autora do plano: gosto, inteligência, e vaidade, sobretudo vaidade, que é a razão suprema de muitas mulheres, e que, apesar de ser defeito, por acaso as leva muitas vezes a fazer coisas boas. Nesse vergel miniatura passavam-se manhãs deliciosas: ali almoçavam muitas vezes, discutindo flores, que então abundavam em Lisboa, e lembrando nomes de que as tinha para se pedirem. Duas dúzias de arbustos encheriam o terreno...;
Para o Porto pedia-as a Gomes Monteiro e o próprio Gomes de Amorim as solicitava para o Brasil. (continua)

Os últimos dias de Garrett (10)

Devia ser um espectáculo admirável e patético o ver aquele bom velho provecto na idade, na virtude, e na fé, cobrindo com os seus cabelos, brancos de neve, e lavando com as suas lágrimas de admiração e de perdão, o arrependimento daquele pecador ilustre, tão acusado, tão culpado talvez, mas o mais caluniado homem desta terra! -- O padre, o grande e verdadeiro padre da igreja de Jesus Cristo, o padre que dando o exemplo da virtude perdoa, absolve, e abençoa os que se arrependem, o padre que acabava de confessar João Baptista d'Almeida Garrett, saía, no fim de uma hora, sufocado, soluçando, com o rosto alagado de pranto, as mãos postas, e podendo dizer-me apenas de passagem, cheio de pasmo, de unção religiosa, e de sagrado entusiasmo: «Que grande homem! que alma! que exemplo admirável!»
Eu e Gonçalves, que também tinha chegado, olhámos um para o outro. A ambos nos corriam as lágrimas em fio...
Gomes de Amorim
[Fim do excerto publicado no Archivo Pittoresco]

Wednesday, July 19, 2006

O gosto da Língua: uma página de Camilo.

Estamos no dia 15 de maio de 1762.
Naquele tempo, os dias de Maio no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía de sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resisitir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.
O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e as ciências dos factos repetidos.
Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluídos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e dos arames eléctricos, afinal, acabaria de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias em Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho.
Início do romance A Sereia (1ª edição, 1865) de Camilo Castelo Branco (reeditado pelas Edições Caixotim em 2005)

Friday, July 14, 2006

A Língua e a História: o mundo não começou hoje

«Nos dois modelos [de ensino, francês e alemão], apesar de antitéticos à partida, assistimos à diminuição do papel da história, não como disciplina ensinada, mas como quadro do conhecimento e da experiência. Quer se oriente o ensino para a adaptação às regras da mudança, quer se trate de dominar pelo conhecimento de uma «base» indispensável de saberes, quer se oriente para a liberdade da expressão de si, minimiza-se o facto de as situações presentes dos indivíduos não serem dadas, mas serem sim o resultado de processos sociais complexos que se inscrevem no tempo [na durée]. Ora, a liberdade dos sujeitos assenta sem dúvida, em primeiro lugar, sobre a sua capacidade de compreender essa história. Marginalizando as tradições – que tendem a estar presentes como «factos» de civilização, sobre os quais cada um é livre de se interessar ou não –, faz-se depender os indivíduos do estado do presente. Não que as tradições, claro, pudessem conter por antecipação as respostas às questões do presente, como os nostálgicos de um ensino tradicional põem a questão. Fica por definir, tanto num modelo como noutro, um tipo de relação com as tradições que prepare a compreensão da história e, sobretudo, que permita antecipar os futuros possíveis e desejáveis.
Isso passa pela definição de uma ideia de língua que dê aos alunos, não os meios de se adaptarem, mas de compreenderem as razões do seu presente e de inventarem as formas do futuro. Na verdade, é a língua materna, pela consciência da natureza histórica que dela podemos adquirir, pelo conhecimento dos recursos semânticos que ela oferece nos seus estádios anteriores, nos textos importantes que ela veiculou, que fornece, sem dúvida, o meio mais seguro de apreender o presente com distanciação e de formular hipóteses e aspirações em relação ao que ainda não existe. Uma concepção puramente instrumental da língua, centrada num presente imediato, tal como ela tende a impor-se nos sistemas de ensino, não pode abrir a uma compreensão das tensões existentes no interior das nossas sociedades, uma vez que essas tensões são ao mesmo tempo o produto da história, por vezes longínqua, dos indivíduos e dos grupos e exprimem aspirações ao reconhecimento e a um outro futuro.»

Pierre Judet de La Combe e Heinz Wizmann, «Grammaire et Histoire. La question politique da la langue», em Universalia 2006.

P. Judet de La Combe e H. Wizmann são autores de L’Avenir des Langues. Repenser les Humanités (Éditions du Cerf, 2004)